Vivemos numa sociedade grafocêntrica. A leitura e a escrita permeiam as interações humanas. Entretanto, na escola, ainda enfrentamos dificuldades no desenvolvimento de atividades que promovam não apenas o aprendizado sobre a linguagem, mas também a conscientização dos alunos a respeito da importância e da centralidade da escrita e da leitura na sociedade.
Pensar a linguagem como prática social é, portanto, repensar o ensino da Língua Portuguesa. Infelizmente, a concepção sócio-histórica de escrita, voltada às práticas sociais, nem sempre está presente no dia a dia da sala de aula.
A realidade das escolas públicas tem demonstrado que ainda há um longo caminho entre o que se espera do ensino e o que, de forma geral, tem-se realizado com os alunos.
Como professora da Educação Básica sempre me incomodou a forma tradicional e reprodutora de ensino existente na maioria das escolas onde lecionei.
A característica comum entre elas tem sido o distanciamento entre as práticas escolares e as práticas sociais, como se escola e sociedade fossem instâncias separadas, e não, na verdade, complementares.
Esse artificialismo no trabalho com a linguagem pouco tem contribuído para que os alunos se tornem, efetivamente, leitores e escritores. Ou seja, que consigam se apropriar, de forma crítica, de novos conhecimentos, imperativos às mudanças sociais e ao processo de transformação de uma sociedade com tantas injustiças.
O que se tem feito em sala de aula parece ter um fim em si mesmo. Após mais de uma década de ensino básico, muitos alunos estão despreparados para utilizarem a leitura e a escrita como ferramentas e para responderem às novas demandas do uso da linguagem nos mais diversos contextos.
Esse problema – o inadequado processo de escolarização na modalidade escrita e a artificialização da produção dos alunos – tem se tornado um obstáculo para uma aprendizagem significativa.
Tal situação faz parte do meu cotidiano escolar. A insatisfação com a prática docente se mostrou uma oportunidade para a busca de teorias que pudessem colaborar com a ressignificação do meu trabalho como professora de Língua Portuguesa.
Concepções sobre letramento (Bakhtin, Kleiman, Street, Soares, Freire) me fizeram pensar sobre a minha atuação pedagógica, mostrando-se uma possibilidade concreta para um ensino-aprendizagem significativo.
Isso se explica pelo fato de que a aproximação das atividades escolares com as práticas sociais dos alunos pode ser um caminho emancipatório para o ensino.
Meu objetivo foi proporcionar aos alunos momentos de reflexão e aprendizado sobre a língua/linguagem, utilizando a escrita para um uso social e não apenas para a realização de atividades escolares.
Nesse sentido, sugeri à turma desenvolvermos um jornal escolar que representasse a voz dos alunos e trouxesse temas do seu universo, assim como questões relevantes à comunidade escolar. Dessa forma, o jornal teria função social real e leitores também reais.
Para que conhecêssemos melhor a nossa realidade, fizemos com o professor de Geografia uma caminhada pelo entorno da escola, quando abordamos os conceitos da topofobia e da topofilia.
Elaboramos uma lista de pautas sobre o que havíamos visto e percebido durante a atividade. Assim, passamos a ter material para a elaboração de muitas matérias jornalísticas.
Para a produção desses conteúdos, além do levantamento de questões sobre a escola e o entorno, estudamos gêneros textuais do jornal.
Vale ressaltar que o estudo de gêneros e regras da língua culta não se deu unicamente porque o tema constava no livro didático ou estava programado para determinada turma. O conhecimento de aspectos linguísticos partiu da necessidade real dos alunos de produzir o jornal.
Dessa maneira,
“a diferença nos dois enfoques equivale à diferença existente entre, de um lado, saber conhecer os mapas (conhecimento do gênero) e, de outro, consultar o mapa para ir, de fato a um lugar (prática social)” (KLEIMAN, 2006, p. 33).
Os alunos trabalharam em equipes e foram responsáveis por todas as etapas de elaboração do jornal. Depois do jornal pronto, os próprios alunos distribuíram os mil exemplares impressos. Para bancar a impressão (R$ 300,00), buscaram parcerias com a comunidade e criaram pequenas propagandas para veiculação no jornal. No total, foram mais de 40 horas de aulas até o jornal ser impresso. Os alunos leram muito, escreveram muito, aprenderam muito. Mas, para a produção das matérias, precisaram também desenvolver um olhar crítico sobre a própria imprensa e sobre a realidade que os cerca. Realizado entre agosto e setembro de 2017 (terceiro bimestre do ano letivo), o projeto de letramento se apoiou nas interações dos alunos e nas propostas de leitura e escrita surgidas a partir das práticas sociais nas quais estavam inseridos.
Etapa 1 – Conhecer a turma:
A turma do projeto foi formada por 30 alunos do 9º ano do Ensino Fundamental (período vespertino), com idades entre 14 anos e 16 anos.
Cerca de 27% dos alunos já haviam sido reprovados no Ensino Fundamental – dois deles uma vez e seis por duas vezes. Além disso, sete adolescentes (todos meninos) já tinham algum emprego.
A turma era bem agitada. Com frequência, houve a necessidade de intervenção da pedagoga e da direção da escola para mediar conflitos e situações de indisciplina e de desrespeito ao professor e às normas da escola, como ausência de uniforme, atrasos e falta de material para a realização das atividades. Também houve problemas nas relações pessoais, como a prática de bullying, discussões e agressões físicas.
De acordo com observações feitas pelos professores na reunião de Conselho de Classe referente ao 2º bimestre do ano letivo de 2017, houve melhora comportamental da turma na comparação com o período anterior.
No entanto, os problemas detectados ainda persistiam, especialmente aqueles relacionados à assiduidade e à entrega de trabalhos nas datas estipuladas.
Neste cenário, o projeto buscou estimular o protagonismo dos alunos.
Minha preocupação como professora de Língua Portuguesa foi desenvolver nos alunos a leitura e a escrita, de forma que eles pudessem compreender os mecanismos de organização da linguagem e sua função central na organização da sociedade e nas práticas sociais.
Para isso, também tive como objetivo desenvolver uma pedagogia culturalmente sensível, valorizando os saberes dos alunos e as questões importantes para eles e para a comunidade escolar.
Os alunos se animaram muito com a possibilidade de, por meio do jornal escolar, serem a voz dos outros estudantes.
Também demonstraram grande desejo de participação, de forma ativa, num projeto sobre seu universo e o da escola, com questões reais e função social. Essa disposição foi, sem dúvida, maior do que qualquer dificuldade dos alunos em relação à escrita e à leitura.