Ao longo do último ano, livrarias e editoras têm enfrentado dificuldades, devido à pandemia e aos confinamentos forçados, mas foi também neste cenário de crise que alguns pequenos negócios livreiros nasceram e prosperaram, porque "à bolina também se navega".
<p>Em março de 2020, foi decretado o primeiro estado de emergência devido à pandemia de covid-19, que obrigou, num primeiro momento, ao fecho de todas as livrarias, e, posteriormente, permitiu a venda ao postigo.</p> <p>Em abril, a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) indicou que, só naquele período, as livrarias tinham tido quebras de vendas de quase 80%, e prejuízos a rondar os 1,7 milhões de euros.</p> <p>Foi nesta conjuntura, com a ameaça de falência a pairar sobre pequenas livrarias e editoras independentes, que novos negócios surgiram ou se reformularam, e conseguiram singrar, como é o caso das editoras Bazarov, Caixa Alta e Viva a Preguiça, e das livrarias Tantos Livros e Snob.</p> <p>A Tantos livros foi criada no mês anterior à pandemia, e foi com "choque" que as duas proprietárias, Almira Vila Nova e Frederica Benedita, receberam a notícia do encerramento obrigatório das livrarias, e se aperceberam que, depois de muito esforço para constituir a empresa, tinham-no feito no pior momento possível, mas não desistiram.</p> <p>Este projeto surgiu após o encerramento definitivo das Publicações Europa-América, e foi erigido pelas duas amigas e colegas, que fizeram o seu percurso profissional naquela editora, que encerrou em dezembro de 2019, ao fim de 75 anos de existência.</p> <p>"Queríamos continuar o nosso percurso no que sabíamos fazer bem, unimos esforços e recursos" e assim nasceu a Tantos Livros, em janeiro de 2020: constituíram a empresa, negociaram os espaços (onde funcionou a editora) que conheciam bem, na Parede e em Lisboa, e, no final do mês, a empresa estava criada, disse à Lusa Almira Vila Nova.</p> <p>A partir daí, "com muito trabalho, perseverança, sapiência e muito, muito trabalho", no início de fevereiro receberam as primeiras encomendas dos fornecedores e, em 14 de fevereiro, abriram ao público a primeira livraria, na Parede, e faziam planos para abrir a segunda livraria, em Lisboa, em abril, "quando tudo parecia ser um ano normal".</p> <p>"A 17 de março de 2020, estávamos a encerrar a livraria da Parede e vimo-nos obrigadas a adiar a abertura" do espaço em Lisboa, "porque o mundo estava a braços com uma pandemia e Portugal entrava no primeiro confinamento", recordou.</p> <p>Uma semana mais tarde surgiu a possibilidade de venderem ao postigo e, simultaneamente, fizeram as primeiras vendas 'online' através das redes sociais, tudo enquanto faziam remodelações nas lojas com a ajuda de alguns amigos.</p> <p>A 15 de junho, abriram a Tantos Livros -- nome inspirado na frase "Tantos livros, tão pouco tempo..." de Frank Zappa -- de Lisboa, e até ao Natal "as coisas correram bem".</p> <p>Este novo encerramento forçado "foi o segundo golpe em menos de um ano". "Para o primeiro ano de vida da empresa é duro, contudo agora mais bem preparada: não perdemos a esperança e de novo nos reinventámos e organizámos a empresa, para que possa sobreviver".</p> <p>"Avaliámos os riscos e decidimos então abrir, vender imprensa e papelaria, uma vez que comercializamos estes produtos nas livrarias, vedámos o acesso do público aos livros, acelerámos o nosso 'site', que estava em construção, continuámos a vender também através dos canais 'online', e assim fomos aguentando até que o Governo permitiu a venda de livros nos estabelecimentos já abertos e que comercializam outros produtos", relatou Almira Vila Nova.</p> <p>A Tantos Livros procura distinguir-se por criar um ambiente acolhedor, permitir a entrada de animais de companhia, contar com fundo de catálogo em todas as áreas temáticas, ter uma extensa oferta em livros de todos os géneros, imprensa nacional e estrangeira, e dispor de uma galeria de arte, uma cafetaria e uma zona de livros antigos e em segunda mão, descreveu.</p> <p>"Abrir duas livrarias em plena pandemia foi desafiante, por vezes desconcertante, mas conseguimos, lutamos todos os dias", afirmou Almira Vila Nova, lembrando, contudo, que "as livrarias e as editoras em Portugal debatem-se com muitas dificuldades há alguns anos, a pandemia veio acelerar todo o processo".</p> <p>Foi também com esta ideia em mente que Ricardo Costa fundou, em junho do ano passado, no Porto, a editora Bazarov, que se lançou no mercado em setembro.</p> <p>A inspiração para avançar com este projeto já antigo nasceu com o nascimento do filho, e o risco de o fazer em plena pandemia não o demoveu, porque "o mercado livreiro vive fragilizado há muito tempo", e "a culpa não é apenas da pandemia ou da falta de apoios crónica de que o setor é alvo".</p> <p>Por altura do lançamento da editora, Ricardo Costa afirmara à Lusa que "o 'mea culpa' tem de ser transversal a todos, e é preciso entender porque se lê tão pouco e muitas vezes mal em Portugal. Na prática, não existe uma boa altura para lançar um projeto como este, mas isso também lhe dá interesse".</p> <p>Também a Bazarov se caracteriza por apresentar um projeto distinto: dedica-se à ficção literária internacional e ao formato de ensaio longo, e aposta num design minimalista, que rejeita as imagens e as cores, de capas pretas com letras brancas (ficção) ou brancas com letras pretas (ensaio).</p> <p>A maioria do seu catálogo é composto por autores que ainda não estavam publicados em Portugal, mas com grande reconhecimento internacional, explicou o editor.</p> <p>A Bazarov -- nome de um personagem do romance "Pais e Filhos", de Ivan Turguêniev, escolhido pela simbologia da paternidade de Ricardo Costa e por ter sido um livro que o marcou na adolescência -- publicou 12 livros entre setembro e dezembro, e propõe-se publicar 24 títulos este ano.</p> <p>Outra editora nascida no ano da pandemia foi a Viva a Preguiça, de Paulo Andrade, editor e alfarrabista, que lançou este projeto em novembro de 2020, consciente de que "os tempos não eram de feição".</p> <p>"A pandemia, o confinamento da primavera de 2020 e o seguinte período em 2021, assim o confirmaram. Mas à bolina também se navega e é esse o caso. Onde há uma dificuldade, há sempre uma oportunidade. A Viva a Preguiça Editores faz todo o sentido agora", disse à Lusa.</p> <p>Paulo Andrade explica a ideia com a convicção de que "esta é uma época única para nos reinventarmos, renovar o setor livreiro e conquistar novos leitores", uma tarefa que "não é fácil, mas não é impossível".</p> <p>O primeiro título da editora -- "A cidade maquete", de João Vieira, uma revisitação à história recente de Portugal - foi lançado em janeiro deste ano, "precisamente na véspera do encerramento das livrarias".</p> <p>No entanto, saiu a tempo "de ser entregue e estar na montra da Livraria Férin" e de estar a ser comercializado 'online', em várias outras livrarias independentes.</p> <p>Outra 'filha' da pandemia é a editora Oficina Caixa Alta, que se constituiu em agosto, em simultâneo com o lançamento do seu primeiro livro, "Artistas, Artesãs, Pioneiras", de Maria Antónia Fiadeiro, uma compilação de conversas da jornalista com quase cem personalidades femininas ligadas à arte, à cultura e ao artesanato nacional.</p> <p>"Depois de vários anos a trabalhar em edição em contextos diferentes - assumimos as funções de assistentes editoriais, editores, consultores, formadores e agentes em empresas do mercado do livro; passámos, mais tarde, a ser profissionais independentes -, decidimos criar a oficina editorial Caixa Alta para podermos partilhar projetos e dar uma chancela aos livros que queremos publicar por gosto", contou à Lusa Madalena Caramona, que, juntamente com Guilherme Pires e Nuno Quintas, fundaram e compõem a editora.</p> <p>Como editores, tradutores, revisores, formadores ou coordenadores editoriais que sempre foram, o trabalho que fazem na Caixa Alta não se distingue do que faziam anteriormente, mas como pertencem agora ao mesmo coletivo, além de poderem "partilhar projetos, alegrias e angústias", podem também "apresentar aos clientes soluções completas de tradução, revisão e edição de texto para o mesmo projeto", o que é uma mais valia.</p> <p>Relativamente ao momento escolhido para dar este passo, "não foi decisivo, pois a ideia já medrava em nós desde 2017. A pausa forçada que o primeiro confinamento nos trouxe deu-nos algum tempo para concretizar esses pensamentos que debatíamos há anos", explicou à Lusa Madalena Caramona.</p> <p>A editora nega mesmo que tenham sentido algum receio de avançar nesta conjuntura, precisamente porque já há muito que trabalhavam em edição: "Não avançámos contra a corrente; reforçámos o ímpeto dos nossos braços ao remar".</p> <p>Até agora o projeto está a correr "muito bem". "Continuamos com mais solicitações do que aquelas a que conseguimos responder".</p> <p>"Tivemos alguns projetos adiados, mas, na verdade, esses adiamentos foram bem-vindos, dado os constrangimentos gerados pelo confinamento e pelas nossas situações familiares", acrescentou.</p> <p>Situação um pouco diferente foi a vivida pela livraria Snob, que não nasceu em época de pandemia, mas renasceu e reformulou-se, sem imaginar que logo a seguir seria apanhada pelo estado de emergência.</p> <p>Originária de Guimarães, onde se manteve até 2016, esta livraria independente decidiu dar um salto em frente e mudar o centro de operações para Lisboa, localizando-se, primeiro, em 2017, na antiga sede da Sociedade Cossul, na Avenida D. Carlos, passando depois para a vizinha Rua Nova da Piedade. Em 2020, em vésperas do primeiro confinamento, encontrava instalações próprias mais amplas, na Travessa de Santa Quitéria.</p> <p>"Mudámos de espaço em março do ano passado, fizemos um investimento num espaço muito grande, comprámos mobiliário de raiz e contratámos um funcionário", contou Rosa Azevedo, proprietária da livraria, juntamente com Duarte Pereira.</p> <p>Com planos para abrir no final do mês, o casal foi apanhado de surpresa e teve de adiar a abertura, que só se concretizou em maio. Suceder-se-ia, emjulho, uma extensão na Brotéria, o centro de artes e cultura da Companhia de Jesus, no Bairro Alto.</p> <p>A Snob, que se distingue por vender livros novos e em segunda mão, fanzines, jornais fora de circulação e até edições raras, adaptou-se às circunstâncias e, durante o período em que esteve fechada, suspendeu a remodelação e reforçou as vendas 'online', o que está a fazer novamente neste segundo confinamento.</p> <p>Os gastos são agora muito maiores, mas Rosa Azevedo garante que estão a vender muito bem, pelo menos o suficiente para pagar as contas e manter a "cabeça fora de água".</p> <p> </p>