Na conversa anterior, afirmei que o Brasil é o país onde a influência do pensamento filosófico-jurídico português, donde a Filosofia do Direito Luso-Brasileira, revela o seu máximo potencial
<p>Para ser mais específico, nada do que aconteceu naquele país,em matéria de transplantação e recepção jurídicas, tem semelhança em Angola. E porquê? Para responder à pergunta socorro-me do ponto de vista deDarcy Ribeiro (1922-1997), o grande antropólogo brasileiro, quando escrevia: "A sociedade e a cultura brasileira são conformadas como variantes da versão lusitana da tradição civilizatória europeia ocidental, diferenciadas por coloridos herdados dos índiosamericanos e dos negros africanos.” Ao avaliar as realidades sociais e culturais do Brasil actual, pode dizer-se que do mesmo modo que os pluralismos constituem fenómenos transversais, a sua negação afecta a existência de comunidades históricas que integram a sua população, nomeadamente, os Índios americanos e os Afrodescendentes.</p> <p> </p> <p><strong>Transplante e versão lusitana</strong></p> <p>Essa versão lusitana da tradição civilizatória europeia ocidental de que fala Darcy Ribeiro manifesta-se ao nível do pensamento jurídico brasileiro, através do transplante e recepção do direito português. É expressão disso o Código Civil de 1916, uma obra elaborada pelo jusfilósofo brasileiro Clovis Beviláquia (1859-1944). Este código, resultado de um projecto iniciado em 1899, era, igualmente, prova de uma profunda dependência do pensamento português, tal como tinha acontecido com outras iniciativas de codificação ao nível criminal (1830) e comercial (1850), e como trabalho de consolidação da legislação civil do jurista Teixeira de Freitas (1816-1883). Para todos os efeitos, o Brasil inscreve-se definitivamente no movimento codificador ocidental com essa obra. Pode-se concluir que o Código de Beviláquia, sob inspiração dos positivismos europeus do seu tempo, denunciava as mentalidades conservadoras, modeladas pelos preconceitos que emanavam da estrutura escravocrata da sociedade brasileira, no que diz respeito às conquistas sociais e liberdades civis do fim do século. O jusfilósofo cearenese, Orlando Gomes, (1909-1988), atacou o Código de Beviláquia, através da análise das suas raízes históricas e sociológicas. Por isso, observava que determinados factos de relevo, tais como a abolição da escravatura, a proclamação da República e a prosperidade económica não deram origem a mudanças estruturais que pudessem repercutir-se na sua redacção. Mas teve uma longa vida útil que durou quase um século. A sua morte ocorreu em 2002, após a aprovação do Código Civil de Miguel Reale(1910-2006).</p> <p>Se quisermos tirar proveito do que a história da codificação no Brasil ensina, temos aí um bom pretexto para discutir o problema do transplante e da recepção do direito português em Angola, quer na perspectiva do direito comparado, quer do ponto de vista antropológico, histórico, filosófico ou sociológico. É que, nos diferentes países da CPLP, as referidas versões lusitanas, de um modo geral, tomaram a forma de instituições jurídicas, correntes de pensamento, ideais, teorias e doutrinas.</p> <p> </p> <p><strong>Miguel Reale e a tridimensionalidade do direito</strong></p> <p>O tópico da nossa conversa tematiza a Filosofia do Direito de Miguel Reale (1910-2006). Trata-se de um jusfilósofo que nasceu na cidade de São Bento do Sapucaí, município do Estado de São Paulo, Brasil,em 1910. Era descendente de uma família de origem italiana. No plano ideológico, as relações que manteve com jusfilósofos portugueses permitem reconhecer as suas posições conservadoras. Por essa razão, alguns estudiosos da sua obra o identificavam como filósofo da direita académica. Após o lançamento dos fundamentos da "Teoria Tridimensional do Direito”, tornou-se catedrático de Filosofia do Direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Uma década depois, em 1953, publicou o curso de Filosofia do Direito. Foi um dos principais teóricos do movimento integralista brasileiro. Além da actividade política desenvolvida ao nível governativo, desempenhou o cargo de Reitor da Universidade de São Paulo, em duas ocasiões, sendo o período mais longo, entre 1969 e 1973. O seu nome está associado à criação do Instituto Brasileiro de Filosofia e da Revista Brasileira de Filosofia. Em 1980, foi nomeado professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.</p> <p>A Filosofia do Direito Luso-Brasileira, que goza de fortuna editorial e com hipóteses de autonomização disciplinar ao nível académico, representa um tipo de diálogo que se estabeleceu entre os filósofos do Brasil e Portugal, fundando-se no transplante e recepção do direito português, e consequentemente na partilha de visões doutrinárias.No século XX, Miguel Reale, jurista, filósofo e professor brasileiro, foi o rosto desse diálogo.Para António Braz Teixeira, os seus dois predilectos interlocutores são os jusfilósofos Luís Cabral de Moncada (1888-1974) e António José Brandão (1906-1984). Neste sentido, o historiador da Filosofia Luso-Brasileira considera que os três jusfilósofos partilham uma análoga perspectiva doutrinária que assenta na "concepção do direito como objecto ou realidade cultural”. Está aí patente a visão anti-positivista, anti-legalista. Mas terá sido Luís Cabral de Moncada, o primeiro que dos três elabora tal pensamento em 1933.</p> <p>Com o livro publicado em 1953,Miguel Reale expôs a sua teoria, defendendo a tese segundo a qual o estudo e a compreensão do Direito deve ter em atenção três perspectivas dominantes: 1) o Direito como valor do justo; 2) o Direito como norma ordenadora da conduta; 3) o Direito como facto social e histórico.Toda a sua obra posterior viria a ser marcada por interrogações acerca desse "tríplice sentido”.</p> <p> </p> <p><strong>Abordagem interdisciplinar</strong></p> <p>Deste modo, Miguel Reale faz apologia de uma abordagem interdisciplinar que não prescinde do papel que a Filosofia do Direito pode desempenhar, além do lugar que a dogmática jurídica ocupa na história do pensamento jurídico ocidental e das ciências sociais e humanas, normalmente afastadas destes domínios. Quanto a mim, o interesse da "Teoria Tridimensional do Direito” de Miguel Reale, apesar de não lhe fazer expressas referências, reside no facto de ter introduzido a Filosofia da Cultura como focagem fundamentante ao serviço da compreensão da realidade jurídica, designando-a simplesmente como "Culturologia Jurídica”.</p> <p>Essa abordagem interdisciplinar conduzirá à consolidação de críticas aos fundamentos das teorias monistas, em defesa do pluralismo. Sob inspiração de correntes alemãs, Miguel Reale desenvolveu uma Teoria do Estado configurando-se como uma pirâmide com três faces: 1) Teoria Social do Estado; 2) Teoria Jurídica do Estado; 3) Teoria Política do Estado. Consequentemente, conclui que a elaboração de uma Teoria do Estado pressupõe uma Filosofia do Direito e uma Filosofia do Direito do Estado, não implicando tal facto qualquer confusão das duas filosofias.</p> <p> </p> <p><strong>Recodificação brasileira</strong></p> <p>Foi em 1969 que Miguel Reale recebeu o convite para superintender a comissão de juristas incumbida de realizar a tarefa de atualização da legislação civil. Quando em 1975, foi concluído o Anteprojeto de Código Civil,as teorias da pós-modernidade mobilizavam os meios académicos e alteravam as agendas de ensino e investigação do Direito, assinalando vagas de um"movimento descodificador”. Era a crise da codificação uniformizadora, ameaçada pelo pluralismo jurídico. Em contra-mão, o Brasil procurava dotar-se de um novo Código Civil, tomando como modelo a codificação alemã, num esforço que correspondia ao que se convencionou chamar como movimento de recodificação. Assim, o Código Civil Miguel Reale, de 2002, é o seu apogeu, no Brasil. Do ponto de vista da técnica legislativa, manteve-se a Parte Geral do Código Civil de Beviláquia. Contudo invoca-se a superação do individualismo, tal como sucedeu no Código Civil português de 1966, ao serem consagradas cláusulas gerais e os princípios da socialidade, eticidade e equidade.</p> <p>Na cerimónia que marcava o acto de aprovação do Código Civil de 2002, Miguel Reale reivindicava méritos para a comissão que presidiu, tecendo elogios à estrutura do novo Código Civil, devido à originalidade que emanava experiência jurídica e legislativa brasileira.Mas reconhecia que o novo Código Civil não cobria a totalidade do Direito Privado.</p> <p>Ao tomar a palavra na referida cerimónia, o Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, destacou o facto de o Brasil ser como uma nação que, no século XXI, se caracterizava pelo fortalecimento do pluralismo da convivência entre várias etnias e várias culturas e, também, fortalecida pela adesão irrestrita aos direitos humanos. Considerou igualmente que a "Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil”, confirmava a importância da tradição jurídica brasileira.</p> <p> </p> <p><strong>Pluralismo e realidade cultural</strong></p> <p>Se a Filosofia do Direito Luso-Brasileira traduz a existência de um tipo de diálogo entre os jusfilósofos portugueses e brasileiros, poder-se-ia esperar uma fecunda articulação entre os discursos de Miguel Reale e António Castanheira Neves. Ora, o que acontece é que o movimento de recodificação desencadeado pelo Código Civil de Miguel Reale revela o estilhaçamento do pluralismo jurídico tridimensional do jusfilósofo brasileiro e a sua auto refutação. Mas as minhas expectativas de leitor apontavam para a possibilidade de uma convergência perante a argumentação do jusfilósofo português, tendo em conta a sua crítica fundada na "desabsolutização da razão”. Interpretando o pensamento de António Castanheira Neves pode dizer-se que a recodificação brasileira representou um duro golpe contra a reabilitação da Filosofia do Direito, no ocaso do século XX. Ele recorda o facto de que a "positividade histórica do direito através da codificação”, isto é, o direito positivo codificado, enquanto expressão do positivismo jurídico, já se tinha transformado em antifilosofia.</p> <p>Portanto, à luz dos postulados que sustentam a apologia de António Castanheira Neves, as tarefas que caberiam à Filosofia do Direito tinham sido usurpadas por uma teoria geral de sentido dogmático que recorria à técnica das "partes gerais” e das "partes especiais” consumando assim o abandono cultural da filosofia. Afinal, tudo indica que o defensor da "Teoria Tridimensional do Direito”, com o Código Civil de 2002, contribuiu para a eutanásia da sua própria filosofia.</p> <p> </p> <p><strong>*Ph.D. em Estudos de Literatura, M.Phil. em Filosofia</strong> </p> <p> </p> <p>Fonte: Jornal de Angola - <a href="https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/a-filosofia-do-direito-de-miguel-reale/">Jornal de Angola - Notícias - A Filosofia do Direito de Miguel Reale</a></p>